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segunda-feira, 21 de março de 2011

Um diálogo entre Exu e Oxalá

Um diálogo entre Exu e Oxalá

            O céu e a terra fundiam-se no horizonte distante, parecendo uma coisa só, como se não houvesse separação entre o mundo espiritual e o material, a consciência individual e a cósmica. 
            Sentado sobre uma pedra em uma enorme montanha, de cabeça baixa e olhos apenas entreabertos, Exu observava o fenômeno da natureza e refletia sobre o seu interminável trabalho.    
            _Como é difícil a humanidade – pensou em certo momento – parece nunca estar satisfeita, está sempre querendo mais e, em sua essência egoísta desarmoniza tudo, tudo...  Tudo que era para ser tão simples acaba tão complicado.
            Com os olhos habituados a enxergar na escuridão e na distância, Exu observou cada canto daqueles arredores.  Viu pessoas destruindo a si mesmas através de vícios variados, viu maldades premeditadas e outras praticadas como se fossem atos da mais perfeita normalidade.  Viu injustiças, principalmente contra os mais fracos e indefesos.  Com seus ouvidos, também atentos a tudo, ouviu mentiras, palavras de maledicência, gritos de ódio e sussurros de traição.
            Exu suspirou.
            _Serei eu o diabo da humanidade? – pensou ironicamente, ao lembrar o quanto era associado à figura do demônio.  Passou horas observando coisas que estava habituado a ver todos os dias: mentiras, fraudes, corrupção, traições, inveja, e uma gama enorme de sentimentos negativos.
            Foi quando estava imerso nesses pensamentos que Exu ouviu uma voz ao seu lado, dizendo naquele tom austero, porém complacente:
            _Laroyê, Senhor Falante.
            Exu ergueu os olhos e vislumbrou a figura altiva de Oxalá.
            _Èpa Bàbá – respondeu Exu, fazendo um pequeno movimento com a cabeça, em sinal de respeito.
            _Noto que está pensativo, amigo Exu – falou Oxalá.   
            Exu respirou fundo, contemplou novamente o horizonte e respondeu:
            _Trabalhamos tanto...  e incansavelmente, mas os homens parecem não valorizar nosso esforço.
            Oxalá moveu os lábios para dizer algo, mas antes que isso acontecesse, Exu, como que prevendo o que seria dito, continuou:
            _Não falo em tom de reclamação, sou um trabalhador incansável e o amigo sabe disso.  É com prazer que levo o que tem ser levado e retiro o que deve ser retirado.  É com satisfação que abro ou fecho os caminhos, de acordo com a necessidade de cada um, é com resignação que acolho sobre minhas costas largas a culpa do mal que muitos espíritos encarnados e desencarnados fazem, não reclamo do meu trabalho.  Sou Exu, para mim não existe frio ou calor, cansaço ou preguiça, existe apenas a necessidade de cumprir a tarefa para qual fui designado.
            _Se mostra tão resignado e, no entanto, parece que deixa-se abater pelo desânimo – comentou Oxalá, apoiando-se em seu paxorô.
            Exu soltou uma gargalhada, ao que Oxalá deu um leve sorriso, com um movimento quase imperceptível no canto direito dos lábios.
            _Não sou resignado nem tampouco estou desanimado – falou Exu – estou pensativo sobre pouca inteligência dos homens.  Veja só: como responsável pela aplicação da Lei Cármica observo muita coisa.  Observo não apenas o sofrimento que alguns homens impõem a si mesmos, mas vejo também as incessantes oportunidades que o Universo dá a cada dos seres que habitam a Terra.  O aprendizado que tanto precisam lhes é dado por bem, mas quase nunca enxergam pelo amor, então lhes é dada a oportunidade de aprender pela dor, mas geralmente só lembram a lição enquanto a dor está a alfinetar sua carne.  Com o alívio vem o esquecimento e todos os erros e vícios voltam a aflorar.
            Oxalá fez menção de dizer algo, mas com o dedo em riste entre os lábios, novamente Exu o impediu de falar.
            _Ouça – disse Exu, colocando a mão em concha na orelha, como se ele e Oxalá precisassem disso para ouvir melhor.  E ambos ouviram o som que vinha da Terra.  O som da inveja, dos maus sentimentos, da maledicência, da promiscuidade, da ganância.  Exu deu outra gargalhada e disse:
            _Percebe?  Temos trabalho por muitos séculos ainda.
            _E isso não é bom? – perguntou Oxalá, que dessa vez não deixou Exu responder e continuou:
            _Pobres homens, ignorantes da própria grandeza espiritual e da simplicidade do Universo.  Se não desconhecessem tanto o funcionamento das coisas, seriam mais felizes.
            _Não estão preocupados em discernir o bem do mal – resmungou Exu.
            _E você está, Senhor Falante? – tornou Oxalá.           
            Mais uma vez Exu gargalhou.
            _Para mim não existe o bem ou o mal. Existe o justo, bem sabe disso.
            _Então por que tenta exigir esse discernimento dos pobres homens?
            _Eu conheço os caminhos – respondeu Exu um tanto irritado – para mim não existem obstáculos, todos os caminhos se abrem em encruzilhadas.  Para mim as portas nunca se fecham e as correntes nunca prendem. Conheço o sutil mistério que separa aquilo que chamam de bem daquilo que chamam de mal.  Não sou maniqueísta, não sou benevolente, pois não dou a quem não merece, mas também não sou cruel, pois sempre ajo dentro da Lei.  Os homens, coitados, acreditam na visão simplista do bem e do mal, como se todo o Universo, em sua “complexa simplicidade” se resumisse apenas entre o bem e o mal. 
            _Pobres homens – repetiu Oxalá.
            _Pobres homens – concordou Exu – mesmo olhando o Universo de uma forma tão simplista, dividido apenas entre bem e mal, acabam sempre demonizando tudo, achando que o mal é o melhor caminho para conseguir o que desejam ou então acreditam que são eternas vítimas do mal.  E o que é pior, quase sempre eu é que sou o culpado.
            _Mas é você o responsável pelo mal? – perguntou Oxalá, admirando o horizonte.
            _Sou justo, apenas isso – respondeu Exu.
            _Não seria a justiça uma prerrogativa de Xangô? – tornou o maior dos orixás.
            Exu olhou fundo nos olhos de Oxalá e respondeu:
            _Estou a serviço do Universo, de cada uma das forças que o compõe, inclusive do Senhor da Justiça.
            _Isso significa que trabalha em harmonia com o Universo, caro Exu?
            _Imaginei que soubesse disso – respondeu Exu, irônico como sempre.
            _Acho que sempre soube.  Quando observo o horizonte e vejo o céu fundindo-se à Terra, percebo o quanto o material pode estar ligado ao espiritual.  Percebo que apesar de todas as dificuldades que os próprios homens criam, é possível acender a chama da fé em seus corações.  Percebo o quanto eles são falhos, mas percebo também o quanto são frágeis e precisam de nós – e nesse momento pousou a mão sobre o ombro de Exu – sejam dos que trabalham na luz ou na escuridão, pois tudo faz parte do Uno e se inter-relacionam.  O mesmo homem que hoje está nas profundezas mais abissais, amanhã pode ser o mensageiro da luz.
            Exu olhou para os olhos de Oxalá, como se não estivesse concordando, mas dessa vez foi Oxalá quem não deixou que o outro falasse, prosseguindo com sua narrativa:
            _Se não fossem os valorosos guardiões que trabalham nas regiões trevosas, dificilmente os que ali sofrem um dia alcançariam o benefício da luz.  Se houvesse apenas a luz, não haveria o aprendizado, que tem como ponto de partida as trevas.  O Universo tão simples é ao mesmo tempo tão inteligente, que mesmo nós, que observamos os homens a uma distância grande, às vezes nos surpreendemos com sua magnitude.  Os homens são frutos que precisam amadurecer e você, amigo Exu, é a estufa que os aquece até o ponto certo e eu sou a mão que os colhe como frutos amadurecidos.
            _Quem diria que trabalhamos em harmonia? – disse Exu em meio a um sorriso – acreditam que vivemos a digladiar quando na verdade trabalhamos em busca de um mesmo objetivo: o aprimoramento da raça humana.
            Oxalá só não soltou uma gargalhada porque não era esse seu hábito (e sim o de Exu), mas disse sem conseguir esconder o contentamento:
            _Então, companheiro Exu, não temos porque lamentar.  A ignorância em que vivem os homens é sinal de que ainda temos trabalho a realizar.  A pouca sabedoria que possuem significa que ainda estão muito próximos ao ponto de partida e cabe a nós, não importa se chamados de “direita” ou “esquerda”, auxiliá-los em sua caminhada, que é muito longa ainda.  Apenas contemplar as mazelas dos corações humanos não irá auxiliá-los em nada.  Sou a luz que guia os olhos da humanidade e você é o movimento que não a deixa estática. Se pararmos por um segundo sequer, atrasaremos em séculos e séculos o progresso da raça humana, que tanto depende de nós.
            Nesse momento o sol começou a raiar timidamente no horizonte, separando o céu e a Terra.  Exu levantou-se da sua pedra e pôs-se a caminhar montanha abaixo.
            _Aonde vai, Senhor Falante? – perguntou Oxalá, como se não soubesse.
            _Vou trabalhar, Senhor dos Orixás – respondeu Exu gargalhando novamente – Esqueceu que sou um trabalhador incansável e que trabalho em harmonia com o Universo, mesmo que ele me imponha a luz do sol?
            Oxalá não respondeu, mas esboçou um sorriso tímido.  Assim trabalhava o Universo: sempre em harmonia.  Os homens, mesmo ainda presos a tantos conceitos primários, trilhavam os primeiros passos em direção ao progresso, pois não estavam órfãos de seus orixás e protetores.

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